Saber escutar

Dia 23 de outubro. Seguimos no mês missionário, com todos os desafios que a missão nos coloca. Hoje é um dia significativo para a caminhada dos Mártires da América Latina. No dia de hoje, celebramos o martírio de Nativo da Natividade de Oliveira. Este lavrador foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carmo do Rio Verde/GO, assassinado no dia 23 de outubro de 1985, por causa de sua incansável luta na organização dos camponeses, no enfrentamento dos latifundiários. Sua fotografia está presente no nosso Santuário dos Mártires da Caminhada, aqui da Prelazia de São Félix. Nativo, presente na caminhada!

Este ano também comemoramos os 41 anos da III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, realizada no México, em Puebla de Los Angeles, em 1979. Lembrando que esta conferência aconteceu num contexto sociopolítico e eclesial muito conturbado, marcado por contradições referente a realidade social, econômica, cultural e política. Vivíamos em meio a ditaduras, torturas, morte e desaparecimento de milhares de pessoas, guerrilhas de resistência, emergência do neoliberalismo, da direita e do neopentecostalismo. A Conferência de Puebla foi um marco histórico e bastante significativo para a História da Igreja dos pobres da América Latina, apontando a necessidade da igreja caminhar com os que mais sofrem, os pobres.

Puebla nos fez enxergar os sinais dos tempos e escutar o clamor dos pobres do continente. Frente a este clamor, não tinha como calar-se e ficar indiferente. A igreja sentiu a necessidade de abrir-se à realidade dos pobres, e com eles caminhar, como forma de ser fiel ao seguimento de Jesus de Nazaré, que também assumiu o compromisso e se fez um, com os pobres da periferia da Palestina de seu tempo. Em 1979, naquele contexto de exploração dos pobres do continente, a atitude de escuta atenta, foi fundamental para a igreja se perceber como seguidora do Evangelho e se posicionar ao lado daqueles que mais sofriam, consolidando a “opção preferencial pelos pobres”.

Saber escutar é sem dúvida o grande desafio que se coloca para a igreja, se ela quer ser fiel aquilo que Jesus nos revelou. Junto ao escutar está também a atitude de saber interpretar os “sinais dos tempos”. A igreja não foi pensada para ser e viver nas alturas, nuvens, mostrando a face de um Deus distante da realidade sofrida do povo (Deus acima de tudo), mas para ser sal, luz e fermento, para caminhar junto daqueles que fazem a sua trajetória de vida nas mazelas da história. Não se trata de algo fácil de fazer e viver. Talvez por este motivo, muitos ainda procuram e se identificam mais com uma igreja que fica mais no plano individualizado, de uma fé intimista, de louvores e adorações, sem envolver-se nas questões práticas da fé.

Estava eu iniciando o curso de filosofia e o documento de Puebla chegou em boa hora. Vibramos com as propostas para a caminhada da igreja, que surgiram a partir daquela conferência. Este documento calhou como uma luva, frente aos nossos anseios de juventude, que pulsava nas veias. Devoramos o documento, e ele serviu de embasamento para as nossas discussões, frente às posturas mais conservadoras de nossa igreja, sobretudo daqueles mais acomodados, que não queriam abrir mão de seus privilégios, fruto de suas condutas de uma igreja mais clerical e menos pé no chão. Uma igreja que prioriza os sacramentos e a participação nas celebrações nos templos, desconectadas com uma mística encarnada na luta pela libertação da opressão.

Lutamos por uma igreja que seja mais encarnada neste cenário que se desponta no pós-pandemia. Uma igreja que tenha em si o rosto do povo sofredor. De pessoas que perderam o emprego. Gente que está sem trabalho/salário e sem direitos. Gente que passa fome, ainda mais com a carestia da cesta básica. Esta realidade precisa chegar às nossas igrejas. Precisamos urgentemente afiar os nossos ouvidos, para saber escutar o clamor dos pobres. Puebla nos ensinou a interpretar os sinais dos tempos e a ler a realidade nua e crua dos povos. Seria o caso de retomarmos este documento, como embasamento para uma leitura critica da realidade atual. Pena que muitos de nossos bispos, padres, freiras, religiosos, seminaristas nunca leram uma página sequer deste importante documento para a Igreja.

 

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