Sob a égide do amor

Sextou de novo. Em meio à catástrofe pandêmica, temos que vencer um dia por vez. A esperança tem que ser a nossa bandeira maior. As mortes se sucedem e alguns de nós caímos no erro de naturalizar o número excessivo de mortes. Os números de vidas perdidas prematuramente, já não nos assustam mais. Dia após dia, vivemos um novo recorde macabro de pessoas que vão nos deixando órfãos. Enquanto isso há aqueles que ainda fazem galhofa em meio a este cemitério vivo a céu aberto. Quanta indiferença! Só Deus mesmo para nos devolver a esperança de dias melhores.

Hoje fui buscar forças no guerreiro que está sepultado aqui próximo a minha casa, ali na beira do rio. Como a chuva deu uma trégua, rezei tranquilo, tendo seu cão escudeiro que, de prontidão, guarda a sua sepultura. Basta aproximarmos da sepultura de Pedro e lá vem ele deitar-se junto à cruz. Já se acostumou comigo. Sempre que posso, passo por ali. Sinto um estado de espírito bom ao rezar com Pedro. Impossível não pensar num de seus poemas que retrata fielmente seus restos mortais naquela condição: “Para descansar eu quero só esta cruz de pau como chuva e sol, este sete palmos e a Ressurreição!”

Esperançar é a nossa busca permanente neste atual contexto. Se assim não fosse, entraríamos num beco sem saída. Mesmo que a luz no fim do túnel esteja cada vez mais distante. Significa não nos entregarmos ao desespero, mas reerguermos e levantarmos a cabeça, seguindo em frente, construindo alternativas e soluções que nos permitam sonhar com o amanhã que ainda não veio. Sonhar, resistir, insistir, persistir e jamais desistir, apesar dos muitos percalços e do caos reinante. Como nos diz o filósofo e professor Mário Sérgio Cortella: “deixar a nossa zona de conforto para nos lançar em novas perspectivas e provocar as mudanças que se fizerem necessárias”. Haja força!

Nesta tentativa de seguir esperançando, o Evangelho que nos é proposto para o dia de hoje é paradigmático (Mc 12,28b-34). Jesus, através da narrativa da comunidade de Marcos, nos ensina que só há um caminho a ser trilhado por aqueles que se dispuserem a estar com ELE: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força! O segundo mandamento é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo! Não existe outro mandamento maior do que estes” (Mc 12, 30-31)

Jesus sintetiza a essência da vida humana e cristã num único caminho com duas vertentes inseparáveis: amar a Deus com entrega total de si mesmo, porque o Deus verdadeiro e absoluto é um só e, entregando-se a Deus, a pessoa não se coloca no centro como um ser absoluto, mas tendo como horizonte próximo, aquele que está ali à sua frente. Assim, relacionar-se com Deus, implica necessariamente em relacionar-se com o outro, num espírito de fraternidade e não de opressão ou de submissão. Este é o nosso grande desafio, se quisermos fazer um encontro pessoal com Deus. Não há outro meio possível, segundo Jesus. Amara a Deus e ao próximo como a si mesmo.

Uma proposta pra lá de desconcertante. Se não tivermos cuidado com a nossa prática de fé e a nossa vivência crista, vamos nos tornando dicotômicos e contraditórios. Amar a Deus é amar o próximo. Amar o próximo é estar em sintonia com Deus. Assim devemos ser aqueles e aquelas que se deixam reger pelo amor nestas duas dimensões. O amor vem de Deus, porque Deus é antes de tudo, amor. Amor em plenitude. Amor que se traduz numa entrega confiante, como nos diz Santo Agostinho: “Ter fé é assinar uma folha em branco e deixar que Deus nela escreva o que quiser.“ Como nos assegura São João numa de suas cartas: “Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus. E todo aquele que ama, nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.” (1Jo 4, 7-8)

Na minha experiência no exercício de meu ministério sacerdotal, sempre tive muita dificuldade em presidir a cerimônia de “adoração do Santíssimo”, uma das práticas mais comuns em nossa igreja. Não porque não acreditasse na presença real de Jesus na hóstia consagrada. É que, nas poucas vezes que a realizei, vi pessoas, em estado de êxtase profundo, revirando os olhos para o Cristo que ali estava, mas não conseguiam encontrar este mesmo Jesus nas pessoas que encontrava no seu cotidiano. Aliás, tinham uma relação de preconceito e marginalização para com os mais pobres. Pessoas que são capazes de “fazer tudo por Jesus“, mas nada fazem pelos empobrecidos que encontrava pela frente. Eu sempre acreditei que a melhor forma de “adorar o Santíssimo”, é entrar na luta cotidiana para que os despossuídos tenham voz e vez, numa sociedade marcada pela desigualdade, ajudando a construir outra sociedade cada vez mais justa e mais próxima do Reino de Deus. Creio ser também esta a forma que Jesus quer ser adorado.