Suiá Missu ou Marãiwatsédé

Enquanto vou aqui matutano sobre o isolamento social e a quarentena, aproveito para por em dia mais um dos meus rabiscos diários. Estou otimizando bem os meus dias aqui na minha “chácara”. Quando não estou mexendo no quintal, estou lendo ou escrevendo. Aproveitei para ler tudo o que tinha vontade e faltava tempo. Devorei, de novo, até As Confissões, de Santo Agostinho. De leitura imperdível

Estou aqui me recordando da mutação que a minha vida sofreu, desde quando aportei em terras preláticas. Tão logo aqui cheguei, Pedro me destacou para morar num povoado de nome Alto Boa Vista. Dali, saia para atender as comunidades do sertão e os povos floresta adentro, no estilo desobriga. Todo este trecho, era percorrido com a inseparável bicicleta, alem da lanterna e da rede de dormir.

As chamadas equipes de agentes de pastoral eram todas mistas Fui morar numa comunidade, constituída de três mulheres – Irena, Inês, Lourdes e eu. Pedro foi muito esperto quando pensou nesta possibilidade para toda a prelazia, pois tal experiência é de um aprendizado inestimável. Eu, um religioso Redentorista, reaprendendo a viver em comunidade, tendo outras demandas múltiplas, a partir da ótica feminina. Foi uma das melhores coisas que me aconteceu na vida, estar ali com aquelas mulheres de luta, prontas para qualquer que fosse o trabalho. Que aprendizado.

O ano era o de 1992. Um ano atípico para aquele povoado. Naquele mesmo ano, acontecia na cidade do Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no, em junho. Também conhecida como Cúpula da Terra, que reuniu mais de 100 chefes de Estado para debater formas de desenvolvimento sustentável, um conceito relativamente novo à época. Aproveitando-se deste momento histórico, a sócia majoritária da Suiá Missu, a Agip Liquigás, entrega um documento, se comprometendo a devolver a Terra Indígena dos Xavante,, usurpada em comum acordo com os militares brasileiros, no período ditatorial.

A nossa vida passou a ser um inferno a partir dali. Tão logo ficaram sabendo do tal documento, fazendeiros locais e políticos, passaram a incentivar os pequenos posseiros, a invadirem as terras ali a sua frente. Os próprios fazendeiros também entraram para dentro da terra. Pras se ter uma idéia, dos 168 mil hectares que era a extensão do território de Marãiwatsédé, 90% dele estava nas mãos de seis fazendeiros/políticos, inclusive um desembargador.

Mediante ao cenário exposto, Pedro nos orientou dizendo o seguinte: “Apoiamos, e sempre vamos apoiar a luta dos posseiros, menos dentro da terra indígena.” Foi o que bastou para que a nossa pequena igreja de Santo Antonio, amanhecesse toda pichada: Fora Máfia Espanhola. A Igreja é do povo, não é do bispo. Pedro traidor. Queremos padre de verdade. Esta ultima, porque o padre que vos fala, tinha os cabelos longos e andava maltrapilho, como eles costumavam dizer.

Foram tempos difíceis. Haviam noites que não tínhamos a certeza de que amanheceríamos vivos. As noites, rezávamos, sentindo na pele a mesma sensação dos discípulos de Jesus diante da sua morte no calvário. Mas, uma força descomunal brotava de dentro de cada um de nós que ia nos alimentando no dia a dia. A certeza de que e ELE caminhava conosco era tão real que nenhum de nós ousava dizer que iríamos correr da luta.

Vinte anos depois, o território de Marãiwatsédé foi desintrusado. Todos aqueles que estavam ali dentro, foram colocados para fora e a terra, finalmente, voltou para as mãos de seus verdadeiros donos, os Xavante. Terra arrasada, é verdade, devastada pela ação dos desmatadores. Mas os Xavante, seguem reconstruindo o seu território com o plantio de centenas de milhares de árvores nativas próprias da região.