Um Homem de Deus

Segunda feira da quinta semana da páscoa. Um dia que vem chegando preguiçosamente. Aos poucos vamos entrando no ritmo. Lembro-me da autodenominação que Pedro arranjou para si. Depois de se tornar bispo emérito, dizia humoradamente que era o bispo preguiçoso. Só pelo fato de não fazer mais nada e ainda ser cuidado pelas outras pessoas. Aliás, franciscanamente lidava com o Parkinson, chamando-o de “irmão Parkinson”. Também dizia que quem mandava nele era o Dr. Parkinson.

Preguiça a parte, nunca vi o nosso bispo manifestar qualquer tipo de preguiça. Pelo contrário, era sempre muito ativo e disposto a tudo. “Pau pra toda obra”, como se dizia em minha terra natal. Uma pessoa muito franzina, mas de uma tenacidade a toda prova. O que tinha que fazer, fazia e não deixava nada pra depois. Isso também nos motivava para a luta, estando a seu lado. Seus inimigos, inclusive ficavam possessos com esta sua determinação. Não fugia da luta.

Pedro, um homem de Deus! Um “rebelde” e “teimoso” das causas de Jesus. Um Francisco revolucionário do século XX. O que o mantinha sempre antenado às causas dos pequenos era a sua vida de oração. Mantinha uma espiritualidade revolucionária, manifesta em suas poesias e na ação cotidiana. Rezava muito. Mantinha uma sintonia estreita entre si e Deus. Isto era visível em sua pessoa e em suas atitudes. Era devoto de São João da Cruz (1542-1591). Inspirava-se em seus escritos, mantendo uma fé inabalável. Desde quando por aqui cheguei, ficava admirado de vê-lo horas a fio na capela dos fundos de seu “palácio episcopal”.

Pedro levou a serio uma das frases ditas por João da Cruz: “Para possuir Deus plenamente é preciso nada ter, porque, se o coração pertence a Ele, não pode se voltar para outro.” Sua radicalidade evangélica embeveceu seu espírito de pobre com e para os pobres. Pobreza levada a sério até as últimas consequências. Um homem pobre ,mas contra a pobreza. Sua radicalidade de sobriedade foi assim descrita em um de seus poemas: “Não ter nada. Não levar nada. Não poder nada. Não pedir nada. E, de passagem, não matar nada; não calar nada. Somente o Evangelho, como uma faca afiada. E o pranto e o riso no olhar. E a mão estendida e apertada. E a vida, a cavalo, dada.” Não era apenas a letra de uma poesia, mas a vida levada a serio desta forma.

Imagina o meu deslumbramento assim que pisei as terras da Prelazia de São Félix do Araguaia no ano de 1992. Se antes conhecia este bispo pelos seus escritos, estar frente a frente com ele, encheu de alegria o coração de um jovem padre. Era o encantamento de um fã, diante de seu ícone maior da Igreja de Jesus. Quando escrevi para alguns amigos, dizendo que estava na casa de Pedro Casaldáliga, alguns deles não acreditaram, e ainda chamaram-me de mentiroso. Que contasse outra!

Este homem muito me ensinou. Serei eternamente grato a Deus por tê-lo colocado em minha história de vida, sobretudo no início de meu sacerdócio. Entretanto, devo reconhecer que uma das pessoas que muito me ajudou a tomar a decisão de vir trabalhar numa igreja como a de São Félix, foi um dos professores que tive nos meus dois primeiros anos do curso de filosofia, pela PUC de Campinas. O padre Francisco Lenine Viana Pires, que me deu um trabalho enorme na disciplina Sociologia, abriu o horizonte de meu pensamento, ajudando-me a enxergar os fatos sociais a partir de um pensamento crítico. Foi ele que introduziu Marx e a sua visão de mundo em meu pensamento. A partir daqueles dois anos do curso, percebi que eu não era mais o mesmo, levando para a minha vivência da fé a criticidade de um pensamento libertário. Dali para incorporar os documentos escritos a partir das Conferências Episcopais de Medellin, Puebla e Santo Domingos, foi um pulinho.

Pedro, um homem de Deus! Apesar de ser este homem de Deus, colecionou adversários cruéis que o perseguiram em vida. Incontáveis foram aqueles que o desejaram morto. Para alguns destes seus desafetos, ele tinha uma estratégia peculiar. Para um deles, por exemplo, que escrevia nos jornais locais textos acabando com o bispo Casaldáliga, ele simplesmente nada respondia. Este dito cujo algoz ficava muito furioso com esta sua não resposta. Perguntei certa feita a Pedro o porquê dele não responder a altura aos insultos. Pedro simplesmente me respondeu: “Não quero dar ibope para ele”. Assim era Pedro. Assim era este homem coerente aos seus princípios e também no seguimento de Jesus de Nazaré. Viveu como acreditou até os seus últimos dias, presente fisicamente no meio de nós. Apesar de não ter dúvidas quanto a este seguimento, mesmo assim ainda nos dizia: “Na dúvida, fique do lado dos pobres”.