Vida de comunidade

 

Terça feira da oitava da páscoa. Meu coração segue contristado. No momento que agora escrevo, estamos recebendo o corpo do professor Leonor. O cortejo será da entrada da cidade até o cemitério. Nem dá para fazer algo digno da pessoa que foi este notável ser humano. A tristeza toma conta de meu ser também por causa da nossa professora da UFG, Maria do Socorro Pimentel, que se encontra intubada num dos hospitais de Goiânia em estado grave. Ela que sempre foi uma grande parceira do povo Iny (Karajá), realizando abnegadamente seus trabalhos entre eles por longos anos.

“Tristeza não tem fim! Felicidade sim!” Diz a canção de Antonio Carlos Jobim. Esta pandemia veio para nos marcar com uma dor imensurável. Choramos os nossos mortos a cada dia. Só de saber que a minha querida amiga Peninha, esposa do meu amigo Roberto, está também internada, deixa o meu coração em frangalhos. Nunca me esquecerei desta mulher. Uma grande líder da comunidade católica, onde sempre atuou aguerridamente. Ela que foi uma das pessoas que mais trabalhou na preparação de minha ordenação sacerdotal, em 1989, na minha cidade natal, Montes Claros (MG).

Rezei hoje a dor incontida que trago no peito. Uma dor tão infinda, que somente Deus poderá curar-nos deste amargor que sentimos em nosso coração. Tanta dor que me fez lembrar de um dos versos do grande poeta Fernando Pessoa, que assim dizia: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”. Somos capazes de dominar a dor sentida, menos aqueles que a sentem mais diretamente.

Ainda bem que somos pessoas de fé. É esta mesma fé que nos permite acreditar que o amanhã vai chegar. Uma nova aurora haverá de nascer, assim como chegou o grande dia da vitória da vida sobre a morte. Ele venceu a morte e trouxe-nos a vida nova. Vida alimentada pela presença do Ressuscitado no meio de nós, apontando para outro horizonte da nossa existência. Se Ele venceu, com Ele venceremos também! Ele é a luz e a razão de nosso existir sob uma nova perspectiva de dias vindouros.

Apesar da dor ora sentida, vi renascer em mim uma nova esperança, assim que me propus a rezar com o texto da primeira leitura da liturgia de hoje (At 4,32-37). Um texto belíssimo e ao mesmo tempo revigorante, que narra para nós a experiência das primeiras comunidades cristas, à luz da Páscoa do Cristo Ressuscitado. “Ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum. (At 4,32). Estas comunidades entenderam perfeitamente o que Jesus havia proposto, quando da sua estada no meio dos pobres da Galileia.

Uma sociedade alternativa, onde a partilha dos bens não era algo teórico, mas fruto da experiência de fé comprometida e engajada com as causas de Jesus de Nazaré. Dirão alguns incautos que se trata de um texto esquerdista, de um comunista qualquer que se encarregou de fazer a tradução do texto do Novo Testamento de forma tendenciosa ideologicamente. Felizmente não é disso que se trata o texto em questão. É Evangelho mesmo, como nos diria o papa Francisco. É a proposta de Jesus com a instauração do Reino de Justiça, fraternidade e partilha entre nós.

Há relatos de algumas comunidades cristãs, católicas que se recusam a fazer a leitura deste texto de hoje. Ou senão, quando lêem, não fazem a menor referência dele nas reflexões homiléticas. Sem dúvida, este texto os incomoda demais, ao ponto de não fazer nenhuma questão de que sejam refletidos, como possível proposta de projeto de vida. É o retrato fiel das primeiras comunidades, cujo espírito de comunhão que gera a concórdia fraterna e a partilha dos bens. Uma partilha livre e consciente, exigida pela necessidade de cada um e cada uma, voltada para os mais necessitados, de modo a destruir o contraste e a distância entre ricos e pobres. Rompe com o espírito capitalista de posse e propriedade privada: os bens são destinados ao usufruto de todos.

Neste sentido, vem a calhar uma das falas recentes do Papa Francisco nos alertando-nos da necessidade de: “Não vivamos uma fé pela metade, que recebe, mas não doa, que acolhe o dom, mas não se faz dom. Obtivemos misericórdia, tornemo-nos misericordiosos. Com efeito, se o amor acaba em nós mesmos, a fé evapora-se num intimismo estéril”. Fé que nos desafia a viver a vida da comunidade. Viver em comunidade é uma das essenciais do cristianismo. É na dimensão comunitária que temos a oportunidade de viver a nossa fé de maneira encarnada, enfrentando os desafios do dia a dia. Não se trata apenas de uma fé individualizada e intimista, que nos sintoniza com Deus, mas que falta o outro vértice da cruz que é a dimensão da caminhada com os irmãos e irmãs na comunidade. Lembrando antes de tudo que “a igreja que vai impactar o mundo não é a que estamos indo, mas a aquela que estamos sendo.” Igreja que se faz presente na comunidade, pois é na comunidade que é que seremos felizes, como sempre cantamos desde a década de oitenta em nossas comunidades de base.