Chegamos finalmente ao sábado (27), véspera da Semana Santa. A Semana maior, como se falava no meu tempo de criança. Amanhã já é o Domingo de Ramos, em que Jesus volta à Jerusalem, sabendo que os seus algozes tramavam a sua morte. Ele sabia que ali, sua vida corria risco, mas Ele não arreda o pé. Em decorrência da sua fidelidade até o fim, pede ao seu Pai que afastasse dele a tentação de querer voltar atrás: “Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice”. (Mt 26,39)
Muita angústia e dor nos acompanham nestes dias. Estamos batendo recordes atrás de recordes de pessoas que perdem a luta para a pandemia. A monstruosidade destes tempos nos deixa abatidos. Perdas sucessivas de pessoas queridas que tanto amamos. É imensurável a dor de quem perde um de seus entes queridos. Nossa amiga Jô é uma destas pessoas. Acompanhar o cortejo fúnebre de seu esposo, na companhia de sua filha pequena, estando ela internada, também com o vírus, sem poder se despedir daquele que passou os últimos anos a seu lado. Uma doença traiçoeira que judia das pessoas antes de levá-las para estar com Deus.
Não consigo imaginar que as pessoas que estão perdendo as suas vidas não estejam no colo de Deus, sendo acariciadas pela mãe do Salvador. É muita indignação, ver tanta injustiça sendo cometida, com a anuência do desgoverno que tomou de assalto os destinos desta grande nação. Com certeza que estas pessoas, que ora nos (des)governam, trazem em suas mãos o sangue de tantos inocentes. Sangue este também que passa pelas mãos daqueles e daquelas que são coniventes e apoiam esta política necrófila genocida. Não tenho dúvida alguma de que tais pessoas pagarão pelos seus crimes um dia.
A justiça humana tarda e falha! Temos exemplos de sobra para acreditar nesta máxima. Por mais que se diga que a justiça é cega, um dia ela vem e ganha à luz do dia. Todavia, a justiça divina se faz sempre presente. Tudo nesta vida falha: amigos, dinheiro, poder, trabalho. Mas Deus não falha jamais! O que Deus diz acontece! Os seus planos são perfeitos! Ele sabe o que é melhor para todos nós. Precisamos apenas confiar. Ele é a nossa segurança sempre. Mesmo nos momentos mais difíceis como agora, sabemos que Deus não vai falhar. Ele nunca falha. De todas as suas promessas, nenhuma delas falhou. Todas se cumpriram no tempo devido. (Jos 21, 45)
Meu encontro com Deus hoje foi marcado por esta indignação. Rezei com o meu coração rasgado pela dor. Fiz a experiência de uma mãe, vendo um de seus filhos partirem, sem que nada pudesse fazer. Angustiado e triste pela perda de tantos amigos que se foram. Histórias, projetos, sonhos interrompidos prematuramente. Vidas precocemente tiradas do meio de nós. Vidas importam! Todas as vidas importam! Viver é o sonho de Deus desejado, sendo desenhado em nossas ações. Cada conquista, cada passo dado, é a prefiguração da contemplação deste sonho.
Viver cada dia é fazer este sonho de Deus acontecer em nós e nas demais pessoas. Sonhar fazendo e sonhando com o sonho de Deus. “Eu vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10), disse Jesus alto e bom tom. Somos e devemos ser sempre pela vida em primeiro lugar. Vida de todos os seres que compõem a nossa Casa Comum. Não abrimos mão disso. Os mártires da caminhada já nos mostraram o caminho. Se vidas são dadas pela vida, que seja numa perspectiva maior, não na forma como estão sendo ceifadas, por puro descaso daqueles que deveriam ser os cuidadores destas vidas. Vidas pela Vida! Vidas pelo REINO! Como fez Jesus, o mártire maior, sendo ele o primeiro a experimentar o cálice amargo do sacrifício de dar-se pelas vidas.
Vidas pela vida! Vidas pelo Reino! Este foi o lema que sempre norteou a caminhada na Prelazia de São Félix do Araguaia. Todas e todas que para cá vieram, como agentes de pastoral, sabiam de antemão, que estar aqui significava antes de tudo, estar pronto a lutar pela vida ameaçada de tantos irmãos e irmãs da caminhada. Nosso bispo Pedro ia à frente, desbravando o caminho e com ele nós. Senti esta experiência muito de perto no ano de 1992. A equipe de agentes de pastoral da qual eu fazia parte, estava sendo ameaçada, depois que fizermos a denúncia de que a terra indígena estava sendo invadida por fazendeiros, grileiros e políticos locais. Mediante tais ameaças, Pedro tratou de se juntar a nós, sendo presença profética em meio aquele contexto. Confesso que cheguei a pensar que não passaríamos de uma daquelas noites, mas Pedro colocava a cabeça no travesseiro e dormia sossegadamente.
“É melhor um só morrer pelo povo do que perecer a nação inteira”. (Jo 11,50) Esta foi a conclusão a que chegaram as lideranças religiosas do tempo de Jesus, arquitetando diabolicamente a sua morte. A presença de Jesus era incomoda para eles. Jesus dando cabo do Projeto de Deus, comunicando a vida e a liberdade é intolerável para um sistema opressor que gera a morte. Assim, as autoridades usam a desculpa de que o bem da nação está em jogo. Apelam para a “Lei de Segurança Nacional” (LSN). Vida pelas vidas! Jesus morrerá por todos. Ao matar Jesus, o sistema opressor denuncia a si mesmo e se destrói, abrindo a perspectiva da vida e liberdade para todos.